MALCOLM X: ANCESTRALIDADE, ESPIRITUALIDADE E A RECONSTRUÇÃO DA CONSCIÊNCIA NEGRA
Tamiris Eduarda
7/17/20254 min read


A trajetória de MalcolmX é uma das mais profundas expressões do que significa reconectar-se com as raízes africanas, reconhecer a herança espiritual do povo negro e transformar dor em potência política. Nascido Malcolm Little em Omaha, Nebraska, em 1925, ele cresceu em um ambiente marcado pela violência racial, pela perseguição à militância negra — como a de seu pai, membro da UNIA (Associação Universal para o Progresso Negro), liderada por Marcus Garvey — e pela destruição familiar orquestrada por um sistema que buscava neutralizar qualquer forma de resistência negra.
Desde cedo, Malcolm foi ensinado a desconfiar do sistema branco que marginalizava, criminalizava e desumanizava a população negra. Após a morte brutal de seu pai e o internamento de sua mãe em um hospital psiquiátrico, sua juventude foi marcada por experiências de sobrevivência no crime e nas ruas. Contudo, é no cárcere que inicia o processo de reconstrução de sua identidade — não apenas individual, mas coletiva e ancestral.
Durante os anos em que esteve preso (1946–1952), MalcolmX teve contato com a Nação do Islã, movimento que, mesmo com suas limitações teológicas e doutrinárias, ofereceu uma alternativa simbólica e política ao modelo branco de subjetivação. A partir desse momento, ele abandonou o sobrenome "Little", que considerava um resquício da escravidão (um “nome do homem branco”), adotando o “X” como símbolo do apagamento de sua ancestralidade africana. “O X é o nome de família verdadeiro de todos os afro-americanos. Ele representa o que fomos antes de sermos levados para a escravidão, e o que perdemos com isso” (Malcolm X, 1965).
Essa ação aparentemente simples — mudar de nome — revela uma das bases centrais do pensamento de MalcolmX: a reconexão com a ancestralidade como caminho para a libertação psíquica, espiritual e política. Ele compreendia que não era possível desenvolver uma consciência negra profunda sem compreender as raízes culturais e espirituais do povo africano, sistematicamente destruídas pelo projeto colonial.
MalcolmX resgatava a espiritualidade como força de resistência, mas recusava as formas de espiritualidade cristã colonizada que ensinavam submissão, perdão ao opressor e passividade diante da injustiça. Para ele, a fé deveria estar a serviço da dignidade negra, como força vital para reconstruir o orgulho, a autoestima e a ação coletiva. “Se você não está pronto para morrer por ela, tire a palavra ‘liberdade’ do seu vocabulário” (MALCOLMX, 1965).
Sua visão evolui significativamente após a ruptura com a Nação do Islã. Em 1964, ao realizar a peregrinação a Meca (Hajj), Malcolm passa por uma transformação ainda mais profunda. Lá, ele testemunha muçulmanos de todas as cores compartilhando orações, refeições e espiritualidade. Esse episódio o leva a compreender que o racismo não é um princípio do Islã verdadeiro, mas uma construção política e histórica do Ocidente.
A partir de então, MalcolmX se torna El-Hajj Malik El-Shabazz e amplia sua crítica para além dos EUA, conectando o sofrimento do povo negro à luta anticolonial e pan-africanista. Começa a articular um pensamento que une espiritualidade, ancestralidade e internacionalismo negro. Ele compreende que os povos africanos, seja nos EUA, nas Américas ou no continente africano, compartilhavam a mesma ferida colonial, a mesma desumanização espiritual e a mesma luta por libertação.
Sua espiritualidade, portanto, não se restringe à oração ou à crença religiosa, mas se manifesta como uma ética da reconstrução do sujeito negro. MalcolmX defendia que a libertação não viria apenas com armas ou discursos, mas com o resgate profundo da dignidade espiritual do povo negro, uma dignidade negada pelo racismo e pela lógica da branquitude. Como ele declarou em um de seus discursos:
“Você não pode odiar as raízes de uma árvore e não odiar a árvore. Você não pode odiar a África e não odiar a si mesmo” (MalcolmX, Discurso em Harlem, 1964).
Esse chamado para reconectar-se com a ancestralidade africana não era folclórico nem essencialista. Era um chamado político-existencial: para amar o que se foi ensinado a odiar, para desejar o que foi negado, para construir novas formas de existência onde antes só havia marginalização. É também nesse ponto que a trajetória de MalcolmX se cruza com a de autoras como Lélia Gonzalez e Neusa Santos Souza, que, no contexto brasileiro, denunciam o epistemicídio, o embranquecimento subjetivo e a negação da história negra como formas de violência colonial que impactam profundamente a saúde mental da população negra.
MalcolmX nos ensina que reconectar-se com a ancestralidade é um ato radical de cura coletiva e afirmação da existência negra. Sua biografia é uma travessia da dor ao despertar, da submissão à autonomia, da exclusão à criação de uma nova linguagem política e espiritual. Ele provou que não há revolução sem reconexão com o que fomos — e com o que podemos ser.
Referências
MALCOLM X; HALEY, A. A autobiografia de Malcolm X. São Paulo: Globo, 2004.
GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afrolatino-americano. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro. São Paulo: Zahar, 1983.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. São Paulo: Cobogó, 2019.